Na última semana, aconteceu um evento que causou pequenos abalos no mundo gamer internético: o Voxel, que é o veículo de games do TecMundo, que por sua vez nasceu debaixo do saudoso Baixaki, propriedade do grupo NZN, foi comprado em 2015 pelo HID Group, um grupo internacional de capital financeiro que compra empresas e faz Private Equity, etc. Enfim, esse veículo, que é propriedade desse grupo, postou um vídeo no seu próprio canal no YouTube falando basicamente que o seu cliente principal, os gamers ou jogadores (ou pelo menos a atual geração de jogadores), é a mais chata de todas as gerações. Ora, porque reclamam muito, porque ao invés de jogar jogos que são cada vez mais caros e que muitas vezes têm sua qualidade piorada, eles reclamam desses jogos. Muitas vezes, segundo a opinião do nosso ilustre jornalista, reclamam sem comprar e jogar o jogo antes, baseando-se em trailers ou vídeos e não na sua própria experiência. São pessoas que agem como gado por não terem sua própria opinião.
Evidentemente, numa dessas, ele reclamou das pessoas que falam mal do uso do pronome neutro nos jogos, como foi o caso do recém-lançado Baldur’s Gate 3. Reclamou de um sujeito que, por conta da oposição à ideologia woke, cancelou sua assinatura do Game Pass e disse que, no fundo, quem faz esse tipo de reclamação e crítica ao invés de jogar os jogos deveria sair de casa, lidar com problemas reais e com gente chata, tocar grama ao invés de ficar na internet reclamando. Além disso, deixou claro que esse tipo de pessoa não trabalha, é vagabunda. Ignorou o fato de que boa parte da audiência que joga esses jogos mais caros, que tem acesso a esse tipo de conteúdo e que acompanha veículos jornalísticos de games, normalmente é um público um pouco mais velho e que já trabalha. Afinal, se não trabalhassem, não teriam como comprar jogos de R$300.
Logo em seguida, David Jones, youtuber de games que atualmente faz parte da bancada do Flow Games – um veículo jornalístico de games criado pelo Flow, contratando jornalistas experientes como Mikil – fez um vídeo respondendo ao sujeito. Em grande parte, ele apontou as contradições no discurso dele, dizendo que as pessoas têm direito de ter a opinião que quiserem e que não precisam comprar um jogo de R$300 para formar uma opinião sobre ele. É possível formar opinião com base em análises e trailers, pois é para isso que os trailers servem: para mostrar uma prévia do jogo e permitir que o público decida se gostou ou não e se comprará ou não.
Boa parte do trabalho de youtubers como David Jones e jornalistas como os da equipe do Voxel é entregar essas informações, fazer análises dos jogos para explicar ao jogador o que ele deveria saber sobre o produto antes de decidir se vale a pena comprá-lo. E aí a coisa fica mais engraçada. Por mais que o próprio David Jones muitas vezes se chateie com críticas que ele considera exageradas sobre a “lacração”, ele reconhece que as pessoas podem ou não gostar dessas ideias e que isso é um critério pessoal.
Isso não ficou por aí. Após os 40 minutos de resposta do David Jones, o Voxel fez um vídeo resposta às respostas que receberam. Nesse vídeo, o próprio jornalista colocou o que disse quase como uma opinião institucional do veículo, e não apenas dele, dizendo que "o Voxel soltou um vídeo" e não que ele fez o vídeo. Logo em seguida, puxou a carta do preconceito e da homofobia.
O mais curioso aqui é o fato de o jornalista do Voxel ter usado a questão da liberdade de expressão, ou seja, argumentar que existem pessoas que usam a liberdade de expressão como pretexto para serem preconceituosas. Ao mesmo tempo, David Jones se posiciona como membro da bancada do Flow Games, um veículo que contratou jornalistas para fazer um trabalho e que faz parte do guarda-chuva do Flow – um grupo que tem como uma de suas bandeiras, ao menos na teoria, a questão da liberdade de expressão.
A coisa se aprofunda ainda mais porque existe uma questão financeira ligada ao próprio Voxel e ao grupo NZN – e, claro, ao homem laranja, que vamos comentar daqui a pouco. Mas antes disso, é preciso esclarecer algumas coisas. O que está de fundo nessa situação é um conflito de representação. Você tem uma opinião e uma linha editorial sendo expressa por esse veículo de games e por boa parte dos outros veículos mainstream ligados a estruturas corporativas maiores, e essa opinião não representa, ou pelo menos entra em conflito, com a opinião da maior parte do público que os consome e a quem eles deveriam representar e servir.
Isso não acontece apenas no jornalismo de games; está acontecendo no jornalismo como um todo. Esse conflito é muitas vezes mal representado pelos próprios jornalistas. Até porque o jornalista tem um papel – especialmente no caso do jornalismo de games – que é aferir o que está acontecendo no mundo (ou no mundo dos games) e contar para quem consome as notícias em seu veículo. Para além disso, há outro papel: o da crítica cultural.
E do meio desses jogadores enraivecidos surge um modus operandi que vai influenciar a campanha do Donald Trump na sua primeira eleição à presidência. Não é uma surpresa que isso aconteça, pois mesmo quando esses jornalistas não são diretamente dependentes dessas empresas de games, o mundo corporativo nos últimos anos tem sido fortemente influenciado pela agenda de diversidade, equidade e inclusão, além das diretrizes ESG. Isso influencia muito as contratações de jornalistas e a linha editorial dos veículos. Além disso, jornalistas já saem da universidade com uma formação ideológica enviesada para o wokismo. No caso do Voxel, ele pertence à NZN, que por sua vez é propriedade do HID Group, presidido no Brasil por Fernando Marques Oliveira. Fernando é parte do grupo IPO (Young Presidents’ Organization) e também da Endeavor, uma entidade que fomenta o empreendedorismo em países emergentes, muitas vezes seguindo critérios ESG.
Essa transformação no jornalismo e na cultura faz parte de um fenômeno maior: a subversão da hierarquia social tradicional. Nas sociedades tradicionais, as elites se formavam com base em mérito e espírito de serviço. Havia uma ordem em que os intelectuais e sábios aconselhavam os governantes, os governantes protegiam o povo e estabeleciam leis, e os comerciantes administravam os bens materiais. Essa estrutura pode ser vista na República de Platão e nos sistemas de castas de diversas culturas. Hoje, no entanto, a elite financeira tomou o controle, impondo sua própria visão de mundo baseada no lucro imediato e na influência política. Esse processo desordenou a sociedade e afetou diretamente a cultura, incluindo a produção jornalística e a forma como os veículos de mídia representam seu público. Além disso, vemos uma crescente desconexão entre os valores tradicionais da maioria da população e os valores promovidos pelas elites midiáticas e corporativas, o que intensifica ainda mais esse conflito.
Fonte para o artigo: Vídeo do canal 5 Elemento.